top of page

Os recomeços do fim



Como é engraçado essa vida que Deus nos deu. É impressionante como nós, seres humanos, estamos fardados ao ato de recomeçar. E não falo exclusivamente de relacionamentos, mas sim do contexto geral.


Vamos partir do princípio (retóricas a parte), quando estamos acostumados com o ventre materno, eis que surge o momento mágico para a mãe, o nascimento, e deve ser esse o motivo do choro inicial da criança. Retirada do aconchego de seu lar e exposta aos perigos do mundo, um novo recomeço avassalador – e hipócritas ainda dizem que o início da vida – assustador e sem a proteção divina que nos cerca. Agora sim, estamos fardados ao fim.


Começamos a engatinhar, andar, comer, falar e a qualquer sinal de perigo corremos para o colo dos pais, que instintivamente nos acolhem e fazem de nós a criança mais feliz do mundo, até o dia do desapego. A escola. Um universo novo, repleto de novidades e socialização. Um recomeço assustador onde o choro não é acolhido, a mamãe não vem nos defender e tudo o que nos resta é nos adaptar. Após alguns anos, quanto tudo está seguro, amizades consolidadas e um círculo social sólido há uma mudança de escola, com um novo ambiente, novas pessoas e uma insegurança infinita nos assola novamente.


E a vida continua, nos adequamos aos novos padrões exigidos e as transformações vitais, porém, um belo dia de sol, seu corpo muda, os hormônios aparecem e tudo o que lhe proporcionava segurança começa a ser um arauto de instabilidade sentimental. A primeira barba, a primeira menstruação, os pelos pubianos, os peitos aparentes, a voz... Sentimentos surgem do nada e nos consomem, paixões avassaladoras nos deixam por terra, inícios e términos são encarados com o humor do dia a dia. Todavia, a vida age novamente e ficamos à deriva.


Universidade. Liberdade. Mudanças. A vida se iniciando em uma fase adulta. Somos responsáveis pelos nossos atos. Pelas nossas emoções... Agora, com uma surpresa divina. Iniciamos a parte lógica do viver e conhecemos a razão. Mudanças de humor, de rotina e tudo volta a ser aquela confusão inicial. Amigos vem e vão. Amores começam a ser mais duradouros, os pais já possuem a própria liberdade (afinal de contas, você já é um adulto, com rotinas distintas e não pregadas à saia da mãe), e você começa a sentir o pesar desta fase.


Os amores já não são passageiros. Em uma bela manhã você irá se dar conta que ama profundamente uma outra pessoa, se declara, se aproxima, se envolvem. A rotina conjunta lhe proporciona a imagem familiar e uma breve semelhança com o lar de sua infância, onde há um pai e uma mãe que lutam juntos, lado a lado pela criação e educação dos filhos. Pronto! Sua esperança de perpetuar a espécie já está formada.


O apartamento dividido com colegas ficou pequeno, não há espaço para sua intimidade conjunta. Buscar um imóvel, mobiliar, juntar as escovas de dentes e seguir em frente. Afinal, agora você já é responsável pelo seu próprio viver. Sua rotina. Suas conquistas, vitórias e derrotas. Sim. Enfim, um casal. A dúvida e a incerteza voltam a bater em sua porta seguida, é claro, de um longo processo de transformação. Um novo recomeço está por vir. Passam-se os anos, a vida segue “de boa”, o sexo é seguro, a vivência é autêntica, a confiança e nostalgia decoram este círculo que se solidifica com o passar dos dias. Seguro e estável. Só que não!


Então, em uma tarde fria de outono, você nota que as coisas não estão como deveriam estar. A desconfiança aumenta. A insegurança surge. O ciúme se faz companheiro. E no frigir dos ovos, a traição era algo contínuo, camuflado – é claro – por beijos duradouros e presentes sem propósitos. É a vida sorrindo novamente e tornando você em um expectador de suas próprias escolhas. Divórcio.


O recomeço em uma fase difícil. Os amigos estão longe. A família ficou em outro lar. A rotina não é a mesma. O cheiro da casa mudou. Os lençóis ficam vazios e seus olhos encharcados de lágrimas em momentos específicos do dia. O jantar deixou de ser o mesmo. A novela perdeu a graça. A toalha não sairá sozinha do roupeiro (você pode até gritar, mas ela não virá sozinha), o itinerário ganha novo sentido e sua cama, será tão gigantesca que já não faz diferença de dormir despojado ou encurralado em um canto. É a vida se moldando à fase da solidão.


Adaptação. Novos amigos. Novas rotinas. Novo contexto. Enfim, você encontrará a beleza da vida novamente. O sol brilhará em uma manhã de primavera e você conseguirá notar o charme de um jardim florido e notará, que assim como o tempo é a vida, cheio de transformações e apreços. Notará que os recomeços são necessários para se aprender a viver. Lembrará dos discursos, findados às sentimentalidades, feitos pelos seus pais lá na sua adolescência e notará que fora indispensável para esta nova realidade. Você percebe, a duras perdas, que viveu quase todos os auges de um ser humano e que este círculo um dia será findado.


Os recomeços são presentes. São dádivas. São demonstrações de Deus – do universo, de Oxalá, ou de alguma manifestação energética - afirmando que você é capaz. Que momentos bons serão eternizados e que os não tão bons servirão de aprendizado e que acima de tudo o perdão deverá partir de você.


Os cabelos ficam brancos, rugas aparecem e sua mão já não é tão macia quanto foi. 40 anos. Quase metade de todo um viver. As exigências são maiores. As qualificações são atenuadas e o contento com o pouco já não lhe serve mais. Bem-vindo a seu novo recomeço. O da compreensão do fim. Agora você olhará para trás com saudade nos olhos. Seus pais não são mais os protetores, mas sim os protegidos, seu lar é um espelho do que foi sua vida. Fotos, música, cheiro e decoração remetendo a sentimentalidades colecionáveis. É a vida se apresentando da melhor forma. A forma mais pura e íntegra. A forma adulta.


O recomeço. Sim, ele estará presente nesta fase, pois serão tantas transformações de rotinas, tantos colegas novos, empregos repaginados, cidades estranhas, amores incontestáveis, aniversários vazios, outros cheios, casa nova, carro novo, boleto novo e outros amarelados. Heis a vida um contínuo recomeço para o fim.

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Nenhum tag.
Siga
  • Twitter Basic Square
  • Facebook Basic Square
  • Instagram_App_Large_May2016_200
  • Pinterest Social Icon
bottom of page